terça-feira, 25 de abril de 2017

Quando falo coisas reais*

Tema: Do que me contaram
Por Rafael Freitas

Era um acampamento de oração para jovens e eu estava lá. Não consigo lembrar nomes e datas, mas a história daquele monge magrelo e engraçado, contada sob a tenda no sábado à tarde, é difícil de esquecer. E de guardar.

Era nas ruas que ele realizava sua "missão": atravessava a cidade para não ser reconhecido, trocava o hábito marrom e o cordão com os votos por jeans e camiseta e ia para as ruas, na noite, fazer companhia para marginalizados e marginalizadas, travestis e vítimas da AIDS. Uma conversa amiga, um conselho, uma orientação. Mas como os rostos iam ficando conhecidos, estabelecia-se uma relação, uma proximidade. Entre esses rostos havia uma travesti na fase terminal da doença.

Quando foi internada, esse monge lhe visitava no hospital, oferecendo ajuda, cuidado, ombros e ouvidos. Talvez para prová-lo, ela começou a pedir favores estranhos. Certo dia pediu uma revista pornográfica. Ele comprou e, chegando lá, ela pediu: _ Não enxergo, lê pra mim. Mas e o voto de castidade? - pensou o monge. Lembro da piada e do gesto feito enquanto narrava sua contação de história adulta.

Um outro pedido: um estojo de maquiagem. Ele também comprou e, chegando lá, ela pediu: _ Não consigo me maquiar sozinha, faz isso pra mim? E ele fez. Ela pediu o espelho, se olhou e disse: _ Nunca me senti tão bonita. E assim que se despediram, pois ela se foi dias depois.

Numa outra vez, o monge estava no cinema. Seu celular tocou e ele reconheceu o número de um dos rostos com que se relacionava. Atendeu à ligação e ao pedido de ajuda: _ Socorro, me leva pra casa da minha tia, vão me pegar! Deixou o filme pela metade.

Aquele rosto indicava um caminho afastado e, num certo  ponto da estrada, puxou um canivete e ordenou ao monge que parasse o carro e descesse. O rosto também desceu, roubou o monge e passou o canivete no seu pescoço de um lado ao outro, como comprovava a cicatriz. Caído e sangrando, ficou vendo aquele rosto se afastar. Quando faróis brilharam na estrada, o monge fez um esforço para se levantar, pulou na frente do carro e pediu ajuda. Enquanto ia para o hospital, rezava: _ Só quero ir para o céu se lá tiver cheiro de terra molhada. Talvez não tivesse, pois mesmo tendo perdido tanto sangue, ali estava: um milagre vestindo uma hábito e uma cicatriz.

As duas histórias me tocam. A primeira me fala de preconceito e amor. A segunda, de confiança e fé. Ambas me falam de esperança.


* Trecho da canção Milagre dos Peixes, de Milton Nascimento.

4 comentários:

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